“Como
justificar que somos uma humanidade se mais de 70% estão totalmente alienados
do mínimo exercício de ser? A modernização jogou essa gente do campo e da
floresta para viver em favelas e em periferias, para virar mão de obra em
centros urbanos. Essas pessoas foram arrancadas de seus coletivos, de seus
lugares de origem, e jogadas nesse liquidificador chamado humanidade. Se as
pessoas não tiverem vínculos profundos com sua memória ancestral, com as
referências que dão sustentação a uma identidade, vão ficar loucas neste mundo
maluco que compartilhamos.”
Ailton Krenak
Livro: "Ideias para adiar o fim do mundo"
O que é um brinquedo? Arrisco esta definição possível: entre outras coisas, brinquedo pode ser aquilo que simula o real sem oferecer o risco ou perigo daquilo que é simulado. Uma arma de brinquedo não provoca disparos letais. Um bicho de pelúcia não corre o risco de nos atacar (ou de morrer, que também é uma forma de nos machucar). Partindo dessa linha de raciocínio me ocorre uma pergunta: seria o livro, ou melhor, a literatura, um brinquedo de existir?
Um simulacro da existência pode ser divertido, mero passatempo, mas também pode ser algo perigoso e arriscado, na medida em que nos propõe reflexões desconfortáveis, muitas das vezes "perigosas", já que cruzam a linha do politicamente correto; também pode nos oferecer conclusões pessimistas sobre a vida, sob o risco de nos afundar num pântano psicológico. Os livros do escritor francês Michel Houellebecq, embora sejam divertidos à sua maneira, estão longe de serem mero entretenimento.
Neste romance publicado em 2005, “A possibilidade de uma ilha” (Record, 2006), o leitor vai se deparar com um narrador sarcástico, com uma forte propensão à desilusão existencial (qualquer semelhança com outros narradores do escritor não é uma simples coincidência). Daniel é um humorista, desses que fazem stand-up.
Seus esquetes de humor são bem ácidos e polêmicos, mas fazem muito sucesso. De tal modo que ele enriquece com suas apresentações (e também com os roteiros que escreve para filmes em que o riso e o obsceno chocam e cativam plateias pela Europa).
Daniel logo se casa com Isabelle, editora-chefe de uma famosa revista de variedades. O casamento vai muito bem enquanto a juventude do corpo dela lhe proporciona excitação e prazer. Ele é fissurado em sexo; ela, não. Mas eles se amam apesar disso. E amam também um filhote que adotam, o Fox, cachorro que marca presença do começo ao fim desta história com quase 480 páginas.
Logo no começo da trama o leitor vai se deparar com um tal de Daniel24, outro narrador do livro, e mais à frente entra em cena o Daniel25. Os capítulos lembram versículos bíblicos: Daniel 1, 12; Daniel 24, 7, etc. Não à toa o livro tem um teor religioso e apocalíptico.
O Daniel1, o humorista, é quem está no centro da história que nos é contada, já que é seu relato que a sustenta, uma vez que seus homônimos futuros (o 24 e o 25) estão relendo e comentando os registros deixados pelo seu remoto antecessor. Detalhe importante: esses dois “Danieis” são clones do Daniel1, e seus comentários sobre o relato de vida dele ocorrem milênios à frente, dentro de bunkers, quando a humanidade já foi para o saco após o apocalipse nuclear, restando aqui e ali alguns humanos reduzidos a grupos selvagens, imitando os passos dos primeiros homossapiens na Terra.
Voltemos ao Daniel1 e a seu casamento, que naufraga por conta de suas expectativas sexuais não serem correspondidas. Em pouco tempo, o humorista, já muito rico, se envolve com uma jovem atriz, a Esther, por quem se apaixona perdidamente e sofre uma série de desilusões.
Por essa época, Daniel se aproxima de uma seita chamada Elohim, cuja plataforma dogmática se ampara na promessa de uma vida sem velhice, numa existência imortal, visto que a vida de cada indivíduo seria continuada por seu clone, e assim indefinidamente. A seita tem em seu bojo um laboratório genético conduzido por um famoso cientista, que garante que em breve poderá oferecer a imortalidade a seus adeptos, cujas amostras de DNA são recolhidas mediante a doação de suas fortunas.
As narrativas que permeiam os relatos de Daniel1 (na primeira parte, as de Daniel 24; na segunda parte, as do Daniel seguinte, o 25) nos trazem um cenário bem futurista, em que esses clones são chamados de neo-humanos, posto que eles possuem um metabolismo geneticamente modificado, a ponto de não precisarem se alimentar de comida e, portanto, sequer evacuam mais. Os neo-humanos se nutrem apenas de luz solar e sais minerais; vivem isolados e se comunicam com seus pares por meio de conversas on-line.
O romance flerta com essa proposta futurista, com essa pegada meio de ficção cientifica, mas a distopia criada pelo Houellebecq foca muito mais na vida, contemporânea a nossa, do primeiro Daniel, o narrador hedonista.
Sua prosa é por demais humana, demasiado humana. Com isso quero dizer que, em sua literatura, o sexo não está separado do restante da vida. Quando os personagens resolvem transar o sexo aparece tal como é, ou seja, o autor não nos poupa dos detalhes, mesmo sob o risco de parecer pornografia. Além disso, o narrador reflete sobre religião, política, filosofia, mas também tece comentários canalhas e alguns bem indigestos, para dizer o mínimo. Afinal, é essa proposta, creio eu, do romance: a de nos passar uma humanidade, se não aceitável, mas certamente plausível, com suas luzes e sombras, seus altos e baixos. O ser humano com seus dons e podridão, numa abordagem que abusa da franqueza que a escrita ficcional possibilita.
O romance tem seus momentos de baixa tensão. A meu ver, aqui, nessas páginas, a prosa do Houellebecq não tem a mesma atratividade mesmerizante que a de outros romances de sua lavra, como “Plataforma”, “O mapa e o território”, “Seretonina” e, o mais recente, “Aniquilar”. Ainda assim, é um livro que nos prende, principalmente na terceira parte do livro, que adiciona mais emoção à leitura.
Apesar de todo o pessimismo que perpassa a obra, o personagem nos deixa entrever em sua busca pela felicidade a possibilidade de alguma salvação, que seria o mútuo sentimento, não apenas entre duas pessoas, mas destacadamente entre ele e o seu cão. No oceano existencial no qual a humanidade parece naufragar sob o peso de suas próprias mazelas, não seria o amor a possibilidade de uma ilha?
Wilson Gorj
Hoje, numa segunda-feira bem
paradona, sem sal, como, aliás, todas as segundas costumam ser, a minha doce e
querida amiga Claudia Manzolillo resolveu me presentear com suas palavras sobre
o meu livro de ensaios Mosaico e mudou o meu dia, tornando-o cheio de cor.
Super obrigado, Claudinha!
Palavras dela:
"Primoroso
o seu Mosaico!"
"Nota dez para Mosaico!
Quanto me agradou revisá-lo e poder desfrutar dos conhecimentos literários de
Marcelo Mourão! Professora de literatura que sou, me sinto em casa ao passear
pelos variados temas propostos e desenvolvidos nas páginas que compõem este
livro de ensaios. Parabéns!"
PS: Em tempo, Claudia foi a revisora do meu POEMES e do próprio Mosaico.
Amigona e parceira!
Arte da foto e foto: Claudia
Manzolillo
linguagem toda viagem
imagens
sempre me levam a viagens impensadas fotografias me levam a grafias outras
imagens recriadas escrevo não como Manuel Bandeira para não morrer mas como
Federico Baudelaire para não morrer antes da morte. ontem o sonho me trouxe ela
de volta leve como espuma quando beija a pele da areia. muitas vezes imagens
me levam a viajar — como deve ser escrever para não enlouquecer ¿ muitas vezes
algas que ela traz no mar da boca desce abaixo do umbigo e se encaixa entre as
coxas encharca a língua de saliva e me lembra algum despacho Olga Savary quando
me diz que mar é o nome do seu macho.
Artur Gomes
O
Homem Com A Flor Na Boca
https://fulinaimatupiniquim.blogspot.com/
Editora
Penalux – 2023
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