terça-feira, 5 de outubro de 2021

o homem com a flor na boca

 


 Artur Gomes 


O  Homem Com

A Flor Na Boca

:

Deus Não Joga Dados


 

livro em processo de criação, fase de revisão e alinhavos das formas, estruturas de linguagens, com os delírios plenos dos desígnios mallarmaicos em estados baudeléricos bem pra lá de baudelíricos

Poética, Política Memória

 


Poética, política e memória

 

Escrever prefácio para um livro de Artur Gomes é um desafio prazeroso. Desafiante é mergulhar no universo imagético e político que sempre compôs sua poética. Este Fulinaíma Tupiniquim acrescenta o substrato memorialístico ao seu repertório formando a tríade que sustenta o livro temática e formalmente. Meu primeiro contato com a poesia de Artur se deu nos anos 80 por intermédio de seu livro Suor & Cio, obra cuja temática estava em consonância com as reflexões suscitadas pelas “comemorações” do centenário da Abolição da Escravatura em 1988. A partir daí, acompanhei suas criações tanto impressas quanto performáticas, pois Artur não é poeta apenas de livros e silêncios das salas de estares, livrarias e bibliotecas, mas também dos bares, ruas e praças que são do poeta como o céu é do condor.

 Poucos poetas contemporâneos expressam tão bem as principais bandeiras do Modernismo de 22 quanto esse vate pós-moderno. Sua poesia é política, antropofágica, nonsense, musical, polifônica e sobretudo intertextual, além de dotada de uma brasilidade corrosiva, avessa ao nacionalismo acrítico que se tem espraiado pela ex-terra de “Santa cruz”.

 Neste livro estão todas essas marcas do poeta às quais acrescento o caráter memorialístico. Nele, Artur não apenas rememora antigos poemas por meio de alusões, paráfrases e paródias como traz para seus versos passagens assumidamente biográficas, se apropriando, em alguns momentos, do gênero diário.

 Estão contidos nessas memórias seus vários heterônimos: Gigi Mocidade, Federico Baudelaire, EuGênio Mallarmè, Federika Bezerra, Federika Lispector. Diferente do que ocorre com o poeta português Fernando Pessoa, a heteronímia em Artur não se manifesta menos na autoria do que no tecido ficcional. Suas diferentes personas emergem dos poemas para a realidade das redes sociais, interagem entre si, com o poeta e os leitores.

 É Gigi Mocidade, por exemplo, que carrega a bandeira do espírito subversivo com seu grito “Irreverência ou morte”, já nas primeiras páginas do livro, e a epígrafe de Federico Baudelaire “escrevo para não morrer antes da morte” anuncia a intenção memorialística. Sócrates, no seu diálogo com Fedro na obra de Platão, argumenta que a escrita seria a morte da memória, mas o que seria de todo o repertório literário não fosse essa invenção humana? Quais mentes suportariam tantos signos produtores de imagens cujos sentidos transcendem às vezes a razão? A escrita não se tornou a morte da memória, mas impossibilitou a morte dos poetas eternizados nas páginas dos livros e memórias dos leitores.

 

poema 10


meus caninos

já foram místicos

simbolistas

sócio políticos

sensuais eróticos

mordendo alguma história

agora estão famintos

cravados na memória

 

Nesses oito versos, o autor nos apresenta metalinguisticamente seu percurso poético até este livro que não é uma obra dedicada ao passado. O presente político do Brasil (des) norteia o poeta que não deixa de atacar com sua lira de peçonha os problemas que nunca deixaram de afligir estas paragens desde o suposto grito de Cabral.

 

poema 12

 

tem algo de errado

nessas estatísticas de mortes

dessa pandemia

multipliquem  60.000 X 10

e ainda não vai ser exato

o número de cadáveres

empilhados nos campos de concentração

que dá um nome ao   país

que ainda nem era uma nação

 

A verve surrealista do poeta se manifesta principalmente nos poemas narrativos protagonizados por personagens intertextuais como “macabea” (alusão evidente à conhecida protagonista de A hora da estrela de Clarice Lispector) e alter egos – lady gumes – parodísticos do próprio autor.

 Em FULINAIMAGEM 14 o tom  de diário se instaura com inscrição de data do acontecimento rememorado e transborda na escrita de si em que se revela o papel que a poesia e o teatro desempenham na escritura de seu trajeto como autor: “a minha relação poesia teatro poesia é visceral vital para o que escrevo como quem encena  a necessidade do corpo como expressão”. Artur Gomes, este homem com a flor na boca, anda a espalhar o veneno agridoce de sua poesia, numa obra em que não há fronteiras entre o artista, o cidadão, o personagem, o eu poético, a obra. Seu livro não é um objeto, mas um produto interno e nada bruto. A obra é sempre muito maior que o livro, pois este, matéria assim como o homem, finda. A obra, esse totem que se pode cultuar no altar da memória, está sempre presente. E é disso que o poeta fala: do tempo presente, do homem presente, da vida presente. Parafraseando Drummond, com Fulinaíma Tupiniquim, “não nos afastemos, não nos afastemos muito”, vamos de mãos dadas com a poesia de Artur.

 

Adriano Carlos Moura

Poeta. Escritor Autor Teatral – autor de Invisíveis – Editora Patuá- 2020 - Professor de Literatura – IFFluminense, Campos dos Goytacazes-RJ – Dutor em Letras pela Universidade Federal de Juiz de Fora - MG

Deus não joga Dados



Deus não joga dados

Mas a gente lança

tenta – em arte tudo se inventa

 

 Eu tenho flores

com a língua atravessada em cada canto da boca

                     EuGênio Mallarmè

 

 Dê  Livros

Dê  Beijos

Dê  Lírios 

Delicadezas

para Sofia Brito

 

Bebo teus olhos atlânticos

e tua voz portuguesa

como quem bebe no Tejo

saudades de Lisboa

 

caminho com os teus passos

em direção ao poema do desassossego

Florbela Espanca Alberto Caieiro Fernando Pessoa

 


 Baudelíricas Baudeléricas

 

o poema uma beijo em tua boca bruna tem um B entranhado entre as coxas a pele das amoras gemem quando venta forte em tuas fêmeas pelas ventas  hoje comi duas nessa manhã incendiária quando vim da cacomanga trouxe nos bolsos da calça remendada linha carretel cola de trigo cerol bambu papel de pipa pique bandeira pique esconde jabuti preá da índia pés de abóboras replantáveis o pé de abacate ainda não nasceu Isadora chegou ontem 30 de março numa tarde outono à sol aberto noite gelada frio na medula maya ainda escreve sobre depressão no tempo falks may abriu as asas pra malásia e a outra mora do outro lado em outra terra rio grande muito longe tenho sede

 

                                             Federico Baudelaire 


As vezes me re-par-to mul-ti-pli-co em 7 alegria noves fora nada tudo é baudelérico fedederico me dizia leonardo fez 80 afonso 84 na rede somos 3 quando ele vem já somos 4 em temporais escrevo e sangro como boi antes da morte muitos outros já se foram e nem gozaram em 69 se eu me lembrar 64 não posso esquecer 68 era uma noite de maio peguei o trem pra são cristóvão depois avião para brasília quando voltei no espelho dédala estava dentro da tipografia




Em 1995 no Centro Cultural Maria Antônia, na USP, assisti uma encenação de Cacá de Carvalho, com texto de Pirandello que me pegou da medula ao osso. A plateia era de 40 pessoas apenas e Cacá circulava entre nós com a sua energia pulsante magnética. O texto era um fragmento da trilogia que ele deu o título  O Homem Com A Flor Na Boca. E a ele, Cacá de Carvalho, dedicamos este livro.

  

Ofício de Poeta

 

franzir a noite

é o mesmo que bordar o dia

costuro o tempo

com linha de pescar moinhos de vento

entre o franzido e o bordado

escrevo um desenredo

e vou foto.grafando

filmando poesia

na solidão dos meus brinquedos

 

 II

 

costuro arco-íris

com linhas de bordar

teus olhos d´água

 

III

 

pego na enxada diariamente

para capinar o quintal

da estação três cinco três

 

literalmente

 

não é metáfora

para lamber cio da terra

como na canção que Chico fez

 

 IV

 

a poesia as vezes me vem da fala

outras de vozes absurdas

na travessia cantei pontos de Jongo

em Folias de Reis Festas Juninas

despachos de Macumba

para me defender dos capataz

nunca vivi porto seguro

na minha praia não tem cais

escrevo como falo aprendi com os ancestrais

 

 V    


com uma câmera nas mãos   

um poema na cabeça

vamos filmar o poema

antes que desapareça

 

A folha de papel em branco sobrevoa a transparência diante do espelho onde me espreitam dois grandes olhos  feito jabuticabas de um pomar que inda procuro a palavra escrita ainda não dita de um desejo impuro e a folha branca de papel pousa em tuas mãos como um pássaro não nascido ainda vindo do futuro. 

 

 

carne proibida 2

 

abusas no meu e-mail

no centro de gravidade

desse meu corpo elétrico

 

não me dissestes porque veio

acender a lâmpada

na metafísica dos poros

 

devoro teu corpo atlântico

com meu canino esquerdo

 

minha fome é quântica

como um barril de pólvora

com o pavio aceso

 

II

salsa alecrim alfavaca cebolinha

azeite limão hortelã vinagre

azeite com pimenta

 

quem resiste esse peixe temperado

que a poesia em mim inventra

 

vem lambe minha língua

que esse me(u)l sal te alimenta


tempestade/temporais

 

eu sou avesso atravesso a cidade

com o que me interessa

as vezes sou sossego outras vezes tenho pressa

 

não procuro o que não quero

me abstenho no que faço

me abstrato quando posso

me concreto em cada passo

 

o compasso é argamassa

o absinto quando traço

uma linha nunca reta

da palavra em descompasso

 

se sou torto não importa

em cada porta risco um ponto

pra revelar os meus destroços

no alfabeto do desterro

a carnadura dos meus ossos

o delírio é a lira do poeta

 


                        Terra em Transe

 em 1990 estava eu em Registro em mais uma transa  literária que tinha sido iniciada em Jardinópolis depois de uma passagem por Batatais, onde Hygia Calmon Ferreira, a musa do poema Sagaranagens Fulinaímicas, me apresentou algumas  estudantes  do curso de letras na UNESP, em São José do Rio Preto.

Em Batatais, quando desci do palco do Teatro Municipal, dois lábios vermelhos carnudos encarnados e dois olhos azuis vidrados vibravam em minha direção, era Cláudia, que ganhou  beijo na boca e alguns anos depois Copacabana consumou  nossos desejos.

Em Registro era uma noite de Sarau no restaurante onde jantávamos  e eu ali absurdado com os poetas soprando palavras ao vento, foi quando Mariana de Piracicaba, vindo a mim feito ondas, me ofereceu saliva ardente numa pétala de rosa branca e espuma vermelha de batom -   delírios em sua língua de Vênus.

 

Desde então queimando em mar de fogo me Registro

 

                                                                       hoje

o maior desafio

                          permanecer Nu cio


Ando alpha

Quase beta

Meu destino : ser poeta

                     

 A mulher dos sonhos

 

ela ainda guarda na boca este poema entre os dentes a língua saliva sílaba por sílaba as palavras que invento ela fala em meus versos ao sabor do vento enquanto freud não explica o que ainda não fizemos ela mastiga meus biscoitos finos e vê nos búzios minhas mãos de fogo quando tem no livro este incenso aceso as entre minhas em  entre linhas dela e salta das metáforas por entre portas e janelas

 

no poema o que ficou?

para

Cesar Augusto de Carvalho



no poema ficou caco de vidros 

azulejando nos azuis

no poema ficou o corte mais aberto

o sangue mais secreto

tanto mal secando blues

 

no poema ficou a língua cega

a faca desdentada

a fome afiada onde era mel agora é pus

no poema ficou o obsceno não sagrado

o beijo ensanguentado

o abstrato do concreto

no poema ficou um objeto

um soneto esfacelado

um hiato no decreto

 

no poema ficou mais um retalho

mais um trapo do espantalho

nesse circo abjeto

no poema ficou o sangue amargo

numa noite quase nada

num curral analfabeto

 no poema ficou a escuridão

nuvens de cinzas

onde antes era luz

 

no poema eu fiquei de pé quebrado

no velório esquartejado

nessa terra  de  tanta cruz



                                                   

                            Dédalus

para Alberto Bresciani

e o seu magnífico Hidroavião

 

O poeta pesca peixes

na floresta de concreto

lâminas de cimento

 

há séculos

não está pra peixe este mar

aqui redes em pânico

pescam esqueletos no ar

 

linhas de nylon

degolam tartarugas

que morrem náufragas

na Av. atlântica

o poeta cata os cacos que restaram

desta pátria desossada

 

 

 arde em mim

um rio

de palavras

 

corpo larvas erupção

mar de fogo

vulcão

 

 

 no romance do Poema

Mário Faustino traçou o seu destino

 

FederikaLispector

 

havia ali
o voo
em que Faustino
se dissolveu
no ar
tornou-se
fausto
anjo
aéreo

 

Herbert Valente de Oliveira

 

 

                                                         Irreverência ou Morte!


Gigi Mocidade

 

escrevo para não morrer antes da morte


Federico Baudelaire

 

 

o poema é um lance de dados

mas não fugirá ao acaso

 

Stefane Mallarmè

 

 

 linguagem toda viagem

 

imagens sempre me levam a viagens impensadas fotografias me levam a grafias outras imagens recriadas escrevo não como Manuel Bandeira para não morrer mas como Federico Baudelaire para não morrer antes da morte. ontem o sonho me trouxe ela de volta leve como espuma quando beija a pele da areia. muitas vezes imagens me levam a viajar -  como deve ser escrever para não enlouquecer ¿  muitas vezes algas que ela  traz no mar da boca desce abaixo do umbigo e se encaixa entre as coxas encharca a língua de saliva e me lembra algum despacho Olga Savary quando me diz que mar é o nome do seu macho.

 

 poema

 

o poema pode ser  a orelha de Van Gog bandeirinhas de Volpi os rabiscos de Miró  o assassinato de Lorca o poema pode ser  o que vai o que não fica Lupicínio na Mangueira Noel Rosa na Portela uma jangada de velas um parangolé do Oiticica o poema pode ser os meus músculos de ossos a minha pele de sangue a morte ancestral em cada mangue e os negros nervos de aço estraçalhados em Martinica o bombardeio de Guernica o cubismo de Picasso

 

 o Delírio é a Lira do Poeta

se o Poeta não Delira

sua Lira não Profeta

                                           

Artur Fulinaíma

 

ando

                  




ando tendo sonhos antropológicos que mais parecem pesadelos e a desgraça é tanta que dói até nos cotovelos

 

poesia

à flor da barra

 

amor à primeira vista

meu livro vermelho de sangue

Ouro Preto na contra capa

a musa morta no mangue

rosa vermelha no altar

desejo paixão fogo brasa

incêndio na minha casa

para nunca mais se apagar                                           

                                                           poema 1

 

o que você faria

se soubesse que és musa

de dois poetas tortos ¿

 

um visivelmente você sabe

o outro se oculta

por trás da lua nova

quando deita rede na varanda

               com sua luz de zinco prata

 

o que você faria

se hoje eu te dissesse

que o tempo tarda mas não finda

e que a lua só é nova

porque se preservou dentro da mata

                                      curuminha ainda ?

  

poema 2

 

esse poema mora dentro de ti

entre pele pelos músculos nervos ossos

quase pronto      mas sempre inacabado

não importa o caminho que o tempo

o disperse em curvas de distâncias

ou que o carinho não baste

quando é sede e fome que que se tem no  corpo

 

não sei por quantas vezes

nem sei por quantos anos

um pássaro leva para se abrigar no ninho

ou para fazer de um fio elétrico

o seu lugar de pouso

quando quase tudo no poema ainda está por vir

só sei que pode sol e chuva atrapalhar o canto

mas será sempre no teu corpo 

um dia irá dormir  

poema 3

 

o homem com a flor na boca

faz dos seus versos

poesia um tanto prosa

 

tem na pele o couro cru

e um parangolé

pendurado no pescoço

onde pensamos nervos

no seu corpo -  ali  é osso

 

tua língua atravessa

o pontal das coxas

quando o leito do seu rio

transborda um oceano

 

carrega espinhos na carne

como fossem pétalas de rosa

com os dentes rasga da musa

 - todo pano - e ali mesmo goza 

 

  poema 4

 

meus olhos atravessam
as lentes - o peixe
e caminham em direção a luz
que está do outro lado
o infinito
que me espera com seus
olhos d´água

 

ela virá com sua boca
de batom marrom vermelho
e eu espero
com minhas 7 línguas
atrás da porta

com o mel e o veneno
a pimenta e o azeite
vamos devorar o peixe
no caldeirão incandescente
em nossas línguas
só flechas - o fogo
                     a águardente –

poema 5

para Jorge Ventura

 

a faca não cala do poema a fala

Dionísio Neto de Bacco

quem sabe filho de Zeus

jantou comigo a Santa Ceia

na casa de Prometeus

nas madrugada de Bento

lambeu o vinho nos seios

das Bacantes no convento

por todos poros do corpo

por todos pelos  e meios

depois grafitou nas vidraças

com dedos de diamantes

a Rosa de Hirochima

num coração estudante

  depois de romper o dia

 por volta da seis e meia

era um coração de poeta

          com poesia na veia 


estação 353

 

um girassol se escondeu

por trás do portão de entrada

                     entre suas pétalas

cantava minha amada

pegando seu barco no cais

                um blues rascante rasgado

 

          desses que não se houve mais

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