quinta-feira, 1 de fevereiro de 2024

múltiplas poéticas

Lado B, resenha

Por Álvaro Cardoso Gomes[1]


Li Lado B de uma só assentada, nem tanto para seguir a lição de Edgar Allan Poe, quanto à obrigatória concisão do conto, mas também provocado por suas sintéticas alegorias. Sim, tomo a liberdade de dizer que o que o Cesar escreve são alegorias, prestando-se a leituras simbólicas de tempos sombrios, que regem  as vidas de cidadãos alienados e submetidos a regimes de exceção. Estes regimes, mesmo não sendo nomeados diretamente, vigem nas entrelinhas, provocando um estupor acomodado do seres, por vezes, marcados, de maneira indelével, com um bigodinho, a lembrar um sujeito endeusado até mesmo em sua morte covarde, vergonhosa.

       Lado B, o título da coletânea e título do primeiro conto, ilustra e bem o que é o lado obscuro das relações humanas, aquilo que subjaz a um mundo absurdo de intimações perversas, conspirações abstrusas e conspiradores, movidos por ideais fanados e sem sustentação. Lado B/Filme B, como nas contrafações de Hollywood, em que orçamentos vis, diretores e atores de segunda, cenários de fancaria, construíam enredos inverossímeis, mascarando verdades, mas, ao mesmo tempo, revelando verdades a serem ocultas. A lembrar uma delas, por sinal e malgré lui, excelente, intitulada Vampiro das Almas, dirigida por Don Siegel, em que vagens são enviadas à Terra, para germinarem cópias dos seres humanos, para que, no fim, reinem os simulacros sobre os cidadãos indefesos. Como o protagonista de “Um Homem de Bem”, que narra suas estripulias com a maior naturalidade, para ajudar a manter um governo fantoche, de exceção, no país, onde viverão os seres produzidos em série, como no das vagens de Don Siegel.

       Entre todas as narrativas, sem desmerecer as demais, salientaria, para meu gosto pessoal, as kafkianas “Cumprindo o Dever”, “Castigo” e “Um Século Depois”. Na primeira, o narrador trata do sujeito que recebe uma intimação, a que deve obedecer, mesmo sem saber qual crime teria cometido, caminhando numa fila interminável, como se fosse um boi preparado para a degola, representada pelo sinal inconfundível com que será marcado, o de um líder de triste memória. Já em “Castigo”, observa-se uma alegoria do que o mundo virtual pode provocar nos usuários, castigados, ao verem que quem aparentemente manipula os signos, além de manipulado que é, faz, na verdade, parte desses mesmos signos, ao “observar no espelho os fluxos descontínuos de seus dados binários”.

       “Um Século Depois” tem traços orwellianos bem configurados, ao invadir o espaço educacional em que “os livros são proibidos” e nem mais existem e em que os cidadãos são vigiados por Big Brothers, hologramas dos protetores, prontos para a delação. O resultado disso está nas aulas, nas quais, professores, que também são hologramas, reinventam narrativas e histórias, para impor uma nova visão da História, a serviço dos interesses inescrupulosos dos tiranos de plantão.

       Resumindo em miúdos, Cesar Augusto de Carvalho dá seu recado, utilizando-se de expedientes literários sempre alusivos, o que implica que não caia num panfletarismo grotesco. Ou seja: põe o dedo na ferida, mas sem apelar para a literatura de consumo partidária, que vem se manifestando e grassando neste nosso bravo mundo de inconsequências gratuitas.



[1] Álvaro Cardoso Gomes, professor aposentado da USP, além de crítico literário é autor de mais de 90 livros entre acadêmicos, para adultos, jovens e crianças.  Ganhou o prêmio Nestlé de Literatura em 1982 com o romance O Sonho da Terra e contemplado com o Jabuti por duas vezes, a primeira em 2010 com O poeta que fingia e a segundo em 2014 com Memórias Quase Póstumas de Machado de Assis.


MANTO

antes de sussurrar meu nome
e navegar estas ilhas
- êxodo das minhas águas -
colhe da chuva a delicadeza dos pingos
para que eu deseje buscar
afluentes nos teus braços
desaguar-me como fonte
reconstruir minhas águas íntimas
peço que me aceites como manto
sobre o rio do teu sono
e recebas meu corpo
como concha do teu

se nos estranharmos à luz
desses mistérios
sossega!
ainda somos véspera!


                           Marcia Friggi

(Foto de Henrique Friggi. Explorando temas difíceis para depois de "chão de mariposas" )



a martelo casa editorial avisa:

mais um pouco dela, Maria do Carmo Ferreira — poema de CORAM POPULO, livro 2 de sua POESIA REUNIDA, organizada por Fabrício Marques e Silvana Guimarães.

a gente sabe que tá todo mundo esperando: na próxima postagem sobre MCF você já vai poder comprar esta obra fantástica, de uma das poetas mais incríveis de nossa língua.

#mariadocarmoferreira #mcf #poesiabrasileira #poesiareunida #poetabrasileira #coleçãocabeçadepoeta



um céu escuro
dentro da boca


da inquietude
espectral das
hostis esferas -
pandemônios
migratórios
encerram
colapsos -
lábios leporinos
aceleram
urbanas
urgências -
carências
estomacais
roendo
o traçado
disforme dos
passos -
pássaros tortos
mortos no chão
azul da tarde -
usinas de urânio
cercam praias
petrificadas -
um exército
de palavras
cerzidas em
um céu escuro
dentro da
boca -
torrenciais
insanidades
nas bordas
peludas do
corpo -
poetas per
versos e
pernósticos
renomados
disputam
espessos
espaços -
indômitas
caravanas
apocalípticas
vendem
tropicais
cataclismas -
o vício da fome
devorando
tudo -
nossa
paisagem de
ossos - destroços
- janeiros de
sangue no
pescoço das
plantas

garbo gomes
30.01.24
UVA.PR.BR.

Arte:
The three candles
As três velas
Marc Chagall
( 1940 ) 

— em União da Vitória


Dear mailartist friends, I still hope it is not true... but I read now on Instagram the news of Cristina Holm's death two days ago. I am very saddened. Friendship is built sometimes even without meeting physically, through thoughts, art, words... and it is sad when a friend leaves. This is one of her beautiful collages for me, for our Kunstbuchproject....

Cinzia Farina


"O grito de Gaza" do artista tunisino Omar Esstar

via Dalila Fonseca 


NUVENS

Sou leve, lépida e fugaz
Vivo em nuvenzinhas despidas de catálogos
Qdo visito o Sol
Me dispo de rótulos
E entro na sua luz

Dissipo dores

A felicidade me assusta
Sempre vivi à margem
Meus cotovelos me incomodam

Me viro do avesso
Escalo meu corpo frágil
Meus olhos sangram
Minha vagina se esvai
No templo sagrado
Em cores amarela-branco
Da criança assustada
que se masturba na chuva
Com seus cachos dourados
E sua pele esquartejada
Pelos domínios sombrios
do Patriarcado demoníaco

São seres aos pedaços
Cravados na Cruz

Da desesperança e do medo

Pessoas como nós são incapazes de ter umavida normal; E qdo isso acontece, mata-nos....

( Luiza Silva Oliveira) 


EU PODERIA ESTAR MATANDO

Armando Liguori Junior

Desconcertos Editora

 ·      Mini Bio 

Eu, Armando Liguori Junior, 59 anos, paulistano, ator e jornalista por formação, humano de nascença. Poderia ser médico, arquiteto, astronauta, oceanógrafo, carcereiro, estilista, personagem num parque da Disney, limpador de lutador de sumô, influenciador, meteorologista, filósofo, mergulhador. Poderia ser um viajante rodando o mundo quantas vezes fosse possível numa vida. Poderia ser qualquer coisa, qualquer um, sou humano: se outros podem, também posso.  Mas escolhi escrever para estranhos.


NÃO DÁ NO MESMO

Da mesma carne

Da mesma espécie

Eu poderia matar se quisesse

Poderia roubar, violar, violentar

Da mesma forma

Do mesmo jeito

Com o mesmo efeito

Por ser humano não me seria estranho

Seria natural até 

Mas ainda não aconteceu

Talvez nunca aconteça

Ou talvez um dia. Quem sabe? 

Eu poderia estar mentindo

Enganando 

E, às vezes, o faço

Mas na maioria

Sou enganado 

É do humano

É de mim

Está aqui

Levo comigo

É só usar quando quiser 

Mesmo sangue

Mesma saliva

Mesma substância

Eu poderia me matar se quisesse

Mas ainda não quis 

Fugir é humano

Assim como enfrentar

Para ver no que vai dar 

Eu poderia deixar o mundo explodir

Deixar tudo naufragar

Querer ver a coisa toda piorar 

Mas não faço parte desse grupo

Dessa gente 

Poderia fazer. Mas não faço. 

Da mesma marca

Da mesma matéria

Da mesma fábrica

Com a mesma embalagem descartável

(só mudando a cor e o preço)

Eu poderia me vender

Me entregar 

Talvez até já tenha me vendido

Uma vez ou outra

Ou sempre. 

Nunca me entreguei 

Da mesma penca

Da mesma cepa

Poderia estar parasitando

Destruindo, adoecendo tudo o que vive ou tenta

Poderia e posso tanta coisa: tudo o que é humano

Poderia não me comprometer

Não opinar, não falar o que penso

Apenas concordar 

Poderia e posso

Mas não, obrigado 

Não quero. Não faço.


 

UM VULCÃO CHAMADO SUSAN SONTAG

A escritora Sigrid Nunez teve um raro privilégio na vida: o de conviver com Susan Sontag. Em 1976, Sigrid era uma recém-formada que aspirava a se tornar escritora. Foi então contratada por Susan Sontag para datilografar sua correspondência.

Nesse meio tempo, Sigrid acabou se apaixonando por David Rieff, filho único de Susan. Casaram-se e, durante um ano, moraram no apê da intelectual em Manhattan.

É sobre esse rico convívio que Sigrid Nunez escreve no livro "Sempre Susan", recém-publicado pela editora Instante, com tradução de Carla Fortino.

Das memórias da escritora, autora premiada de romances como "O amigo", emerge o retrato pulsante de uma personalidade complexa que desafiou todas as convenções e gravou seu nome na galeria de uma das intelectuais mais importantes do século 20, com ensaios que alcançaram grande sucesso de público e crítica, como "Sobre fotografia" e "Diante da dor dos outros".

Na época em que contratou a auxiliar, Susan Sontag se recuperava de um câncer de mama. Sigrid a descreve como um poço de contradições, que sempre se colocava como mentora de quem a cercava - incluindo a própria Sigrid -, detestava ficar só e vivia rodeada de amigos, uma entourage da qual fazia parte eminentes escritores e intelectuais.

Seu apê mantinha o ritmo de uma festa permanente, sempre ocupado, fosse por amigos ou amantes. "Morar com alguém tão hiperativo como Susan já era morar com uma multidão, e havia ainda um fluxo constante de visitantes."

Susan é retratada como elitista. Sempre proclamava a superioridade da cultura europeia sobre a norte-americana, que considerava marcada pela banalidade, embora tivesse alguns poucos heróis estadunidenses.

Sigrid destaca a capacidade de trabalho incomum de Susan: "Para começar a trabalhar, ela precisava liberar longos períodos durante os quais não faria mais nada. Tomava Dexedrine e trabalhava o tempo todo, nunca saindo do apartamento, raramente saindo de sua mesa. Adormecíamos com o som dela datilografando e acordávamos com o som dela datilografando."

As memórias não poderiam deixar de falar do papel de Susan como mãe. Ela teve seu filho David aos dezenove anos. "O relacionamento deles nunca foi uma relação mãe-filho comum". Susan dizia: "Prefiro que ele me veja - ah, sei lá - como uma irmã mais velha."

Não faltam referências ao comportamento irascível de Susan: "Quando estava infeliz com o mundo, ela atacava; queria machucar alguém. Em seu círculo íntimo, sempre tinha pelo menos uma ou um saco de pancadas, e ela batia, e batia, e batia." Sigrid resume esse estado de espírito em duas palavras: Susan era "masoquista e sádica".

Aclamada como ensaísta, seu trabalho de ficcionista nunca foi reverenciado como ela gostaria. "Ela não estava feliz com a obra da sua vida. Falhara em atingir as metas que estabelecera para si na juventude."

Publicadas nos Estados Unidos em 2011, quando a maior parte dos seus personagens já havia morrido, as memórias de Sigrid Nunez nos apresentam uma personalidade vibrante, atravessada pelos conflitos de uma das maiores inteligências do nosso tempo. 
 

Paulo Lima 


O sol rasga o Leste

e costura, em fios d'ouro,

o dia que veste.


                       Lu Nobre


Haiku De Matsuo Basho

O mundo do sofrimento:
                  Mas as cerejas
                     Estāo em flor.


via Maria Marta Nardi 


um torquato  bashô serAfim

não sei se é canibal

      ou  serTão tupiniquim

 

                       Artur Fulinaíma 

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